CARTA ABERTA EM DEFESA DO PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA
O
Fórum das universidades públicas participantes do Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa vem, por meio desta, defender o PNAIC e
prestar esclarecimentos acerca de seu funcionamento e avaliação, em
resposta a críticas que vêm sendo externadas por alguns setores da
sociedade.
As
tentativas de desqualificação do trabalho desenvolvido no âmbito do
PNAIC são inconsistentes e não há, de fato, um debate aprofundado acerca
de quais seriam os reais motivos para os ataques recentes empreendidos
não por professores, mas por setores da mídia e alguns setores da
sociedade. As informações passadas são equivocadas, evidenciando falta
de conhecimento acerca da proposta pedagógica e do funcionamento desta
iniciativa de formação de professores alfabetizadores. Ao criticar o
PNAIC, imputando a ele a responsabilidade de resolver em dois anos a
dívida histórica que este país tem com o direito à alfabetização, os
opositores manifestam opiniões pouco embasadas nos fatos.
A
formação continuada dos professores alfabetizadores no âmbito do PNAIC
foi iniciada em 2013, com continuidade em 2014 e 2015. Foram atendidos,
em cada ano, mais de 300.000 professores. Nunca houve, na história da
educação brasileira, uma ação com tamanha abrangência e tão fortemente
voltada para o fazer pedagógico do professor. Desse modo, podemos
apontar um primeiro aspecto positivo: a garantia do direito à formação
continuada a todos os professores alfabetizadores, tendo como referência
a realidade da sala de aula.
Tal
abrangência só foi possível porque o PNAIC inclui a qualificação de
profissionais efetivos das secretarias de educação municipais e
estaduais, que, assumindo as funções de orientadores de estudo e
coordenadores locais, são responsáveis pela formação dos professores dos
três primeiros anos do Ensino Fundamental, nos próprios municípios.
Desse modo, há um regime de colaboração entre os entes federados
(Ministério da Educação, Secretarias Municipais e Estaduais de Educação)
e as universidades públicas envolvidas, de modo que, em cada estado e
município, os encontros de formação são planejados considerando-se as
peculiaridades e necessidades locais. As ações de formação são
concebidas e executadas por todos e não apenas pelas equipes das
universidades. Desse modo, todos são responsáveis pelas conquistas
realizadas. Nisso reside um segundo aspecto positivo: há, concretamente,
um Pacto entre entes federados, que vêm empreendendo esforços para a
melhoria da qualidade da educação.
Um
terceiro aspecto a ser considerado é que não há obrigatoriedade de
utilização de um material didático específico. Na formação, são
realizadas reflexões sobre diferentes estratégias de ensino e de
materiais, de modo a contemplar variados modos de ensinar e de aprender.
As secretarias de educação podem adquirir materiais como jogos, livros,
revistas, jornais. O MEC também tem colaborado, disponibilizando o
material de referência da formação e distribuindo livros didáticos,
livros de literatura, jogos, dentre outros. Os professores podem
produzir e selecionar materiais diversos.
Assim,
programas de aquisição de livros (literatura e didático) que garantem o
acesso dos estudantes a material de qualidade são discutidos no
interior da formação, as políticas são mais bem compreendidas e isso
ajuda a potencializar o seu uso. Não há, no âmbito do PNAIC, interesses
comerciais que obriguem secretarias de educação a comprar nenhum pacote
fechado de materiais e nem prescrição aos professores do que precisam
realizar em sala de aula. Os professores são formados para ganhar
autonomia e terem consciência do que estão fazendo. Espera-se, no PNAIC,
que os professores ampliem conhecimentos e possam cada vez mais
realizar um ensino consistente, refletindo sobre suas práticas para, a
partir delas, construir saberes, num processo ininterrupto.
Um
quarto aspecto a ser destacado é que o PNAIC apresenta objetivos
ligados aos direitos de aprendizagem que têm ajudado os professores a
definir metas e as redes a desenvolverem suas propostas curriculares com
base em um repertório comum.
As
universidades responsáveis pela formação dos orientadores de estudo
atuam juntas, em seminários periódicos, para refletir sobre temas
ligados ao ensino nesta etapa de escolaridade e produzir os materiais de
referência da formação dos professores. Desse modo, há um trabalho
conjunto de produção de um material básico, ao qual são agregados novos
materiais, em cada estado, para contemplar temáticas e experiências
locais. Os autores dos materiais são pesquisadores de diferentes
instituições, com experiência em formação docente, além de professores
da Educação Básica, que socializam experiências de sala de aula. Desse
modo, há articulação entre ensino, pesquisa e extensão nas instituições
públicas de ensino superior participantes.
Nos
dois anos de execução do PNAIC foram realizadas avaliações permanentes.
Os professores respondem mensalmente um questionário, julgando a
formação recebida quanto a diferentes critérios: distribuição do tempo,
volume de informações apresentadas, relevância dos conteúdos abordados,
aplicabilidade para a prática profissional. Com pequenas variações entre
os estados, os resultados dessas avaliações feitas pelos docentes
mostram que há grande aceitação do PNAIC. Em todos os critérios, as
médias alcançadas têm sido em torno de 9,0.
As
universidades também utilizam instrumentos de avaliação específicos,
nos quais têm sido apontados alguns aspectos muito positivos, como a
qualidade dos materiais de formação utilizados, a articulação entre a
teoria e a prática, a diversidade de temáticas tratadas, considerando-se
a complexidade do trabalho do professor alfabetizador, além do respeito
aos professores como profissionais.
Algumas
universidades também têm desenvolvido pesquisas no âmbito do PNAIC,
identificando mudanças qualitativas nas práticas dos docentes, que
condizem com seus depoimentos e relatos que têm sido narrados em
seminários anuais de socialização de experiências.
Não
há, no entanto, ainda, uma avaliação relativa aos impactos nas
aprendizagens das crianças. A Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) é
a primeira experiência brasileira de avaliação das crianças concluintes
do ciclo de alfabetização. Ela teve início em 2013, ano em que o PNAIC
começou. Foi repetida em 2014. Portanto, o tempo ainda é muito curto
para se ter alguma informação sobre avanços nesta área e, é necessário
se registrar, a alfabetização é um direito que tem sido negado na nossa
história.
Segundo
o IBGE, em 1920, 70% dos adultos com 15 anos ou mais eram analfabetos.
Em 2009, 8,9% da população com 10 anos ou mais era analfabeta. Vê-se,
portanto, que houve uma grande redução na quantidade de analfabetos
entre adultos, embora o país ainda não esteja garantindo esse direito a
todos os cidadãos. É necessário maior investimento para que todos os
adultos possam ter acesso a este conhecimento.
É
preciso ressaltar que também houve mudança e ampliação no que se
considera alfabetização, hoje pensada como domínio do sistema de escrita
para seu efetivo uso em leitura e produção de textos. Assim, nossas
expectativas sobre a aprendizagem de crianças de 08 anos mudaram, embora
algumas propostas de formação de professores e materiais didáticos
oferecidos às redes públicas continuem a adotar concepções que
restringem o conceito de alfabetização à aprendizagem de um suposto
código.
Até
2012 não se tinha dados sobre a situação de crianças aos 8 anos de
idade, pois não havia avaliações como a ANA, uma avaliação em larga
escala que informa sobre os níveis dos estudantes por escola, município
ou estado. Portanto, não podemos indicar claramente quais avanços podem
ter ocorrido nos últimos anos.
A apresentação dos resultados da ANA é feita agrupando-se as notas por intervalos.
No
caso da leitura, a ANA trabalha com metodologia de múltipla escolha e
com habilidades que podem ser medidas com essa metodologia, deixando de
fora outras habilidades também importantes, mas que não podem ser
avaliadas por meio de questões de múltipla escolha.
São
propostos quatro níveis de leitura. O primeiro nível é composto tanto
por estudantes que não conseguem ler palavras, quanto pelos que
conseguem ler palavras, mas não conseguem ler textos.
A
junção desses dois perfis em um só nível dificulta o debate sobre o
diagnóstico feito, pois tradicionalmente as crianças que sabem ler e
escrever palavras são consideradas alfabetizadas. Assim, em uma
perspectiva tradicional no nível 1 estariam as crianças não
alfabetizadas e as alfabetizadas. Muitas propostas de alfabetização,
sobretudo centradas na memorização de letras, fonemas e sílabas
apresentam tal concepção. No entanto, no PNAIC, é utilizada uma
concepção de alfabetização que só considera a criança alfabetizada
quando ela é capaz de ler textos.
Desse modo, no PNAIC teríamos como nível
mínimo esperado o nível 2, em que as crianças são capazes de ler textos
curtos, identificando informações e reconhecendo as finalidades dos
textos. Assim, 75,87% poderiam ser consideradas alfabetizadas em 2013 e
77,79% em 2014. Assim, em apenas um ano, o aumento foi de 1,92%. Tal
diferença pode, a princípio, parecer muito pequena, mas tratando-se de
avaliações em larga escala, sabe-se que as mudanças não se dão, via de
regra, de forma rápida.
Os
níveis 3 e 4 são os das crianças que já têm um domínio maior na
leitura, lendo textos mais longos e complexos. É o que no PNAIC temos
insistido em colocar como metas a serem atingidas em médio e longo
prazo. Em 2013, 42,77% das crianças atingiram tal nível e em 2014,
43,83%.
Em
produção de textos, os resultados são agrupados em cinco níveis. No
primeiro, estão as crianças que não escrevem palavras. Essas são as
consideradas não alfabetizadas por autores de diferentes abordagens
teóricas.
No
nível 2, as crianças escrevem palavras, mas não conseguem produzir
textos. Em uma abordagem tradicional, seriam consideradas alfabetizadas.
Para as equipes executoras do PNAIC, tais crianças não podem ser
consideradas alfabetizadas, pois se espera que elas sejam capazes de
escrever textos.
É
a partir do nível 3 que estão as crianças que escrevem textos. Em 2013,
não houve avaliação das capacidades de escrita de textos. Em 2014,
73.32% estão nesses níveis. Não há como dizer se houve, nos últimos
anos, algum progresso, pois, como foi dito, nunca houve avaliação desse
tipo no país.
Nos
encontros de formação do PNAIC, as discussões conduzem os professores a
pensarem que é importante melhorarmos cada vez mais as capacidades de
escrita das crianças. No entanto, é importante considerar que não se
espera de uma criança do ciclo de alfabetização que ela domine a norma
ortográfica, pois essa aprendizagem ocorre durante todo o Ensino
Fundamental. O mais importante é que ela produza textos com sentido, com
clareza e que atendam a diferentes finalidades na sociedade, para que
não tenhamos, adiante, os ditos analfabetos funcionais, tão presentes
ainda entre adultos na nossa sociedade. Esses analfabetos funcionais
seriam aqueles que conseguem ler e escrever palavras, mas não são
capazes de compreender e produzir textos mais complexos.
Abordagens
metodológicas centradas apenas no ensino de letras, fonemas, sílabas e
palavras não auxiliam os estudantes a chegarem aos níveis mais elevados
de escrita. Por isso, no PNAIC, busca-se aprofundamento de estudos e
planejamento de situações de ensino em que tanto seja garantida a
aprendizagem do sistema de escrita e ortografia, quanto o
desenvolvimento de capacidades de leitura e produção de textos.
Os
dados da ANA, portanto, não podem ainda ser usados para uma avaliação
de avanços, ou não, no processo educativo, embora sinalize que ainda
temos muito que fazer para garantir uma alfabetização plena a todas as
crianças. Estamos com mais de 20% das crianças brasileiras terminando o
ciclo de alfabetização sem conseguir ler e escrever textos. É preciso
energia concentrada para que os direitos dessas crianças sejam
garantidos e que as demais crianças alcancem níveis cada vez mais
ampliados de domínio da leitura e da escrita.
As
reflexões acima sobre os resultados da ANA ajudam a entender que não é
possível, neste momento, fazer relação direta entre o que foi encontrado
e o que vem sendo desenvolvido no âmbito do PNAIC. Sem dúvidas, ainda
há muito a ser conquistado para que se garanta o direito a uma
alfabetização plena de todos os brasileiros. O PNAIC, com certeza, tem
muito a contribuir.
Qualquer
política de formação de professores precisa de tempo para consolidar
práticas e aprofundar conhecimentos. Os problemas educacionais
brasileiros são resultados de uma longa história de descaso. Não se pode
atribuir possíveis resultados negativos a políticas recentes. Qualquer
interrupção na rede de trabalho que se formou pode colocar em risco o
potencial transformador do PNAIC, que se estabeleceu como uma
experiência bem-sucedida de regime de colaboração entre os entes
federados e as universidades públicas. O PNAIC precisa ser concebido
como uma Política de Estado, para que não fique vulnerável a qualquer
instabilidade do País. Deve ser encarado como uma conquista brasileira e
como um esforço coletivo que está acima de interesses particulares.
É
preciso também enfrentar outros problemas que têm impedido, ou
dificultado, a realização da tarefa que temos que realizar. Ações que
garantam a melhoria da formação inicial de professores e sua oferta
pública, a ampliação da jornada escolar das crianças, a melhoria
salarial dos profissionais da educação, a garantia de melhores condições
de trabalho, com tempo suficiente para que os docentes possam planejar a
ação didática, elaborar materiais, desenvolver projetos especiais para
as crianças que estejam precisando, não podem ser desconsiderados no
debate sobre os resultados das avaliações.
Universidade de Brasília
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Universidade do Estado da Bahia
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